“A realidade de um tiroteio é muito mais forte que qualquer curso de IT”

Nailton de Agostinho Maia on Smart Cities and Social Inclusion in Rio de Janeiro´s Favelas.

Interview by Frank Müller
University of Amsterdam


“Smart Urbanism” refers to technological innovation and digitization of urban environments. It usually implies normative assumptions about the relation between social and technical improvements. Smart Urbanism, as its proponents argue, enables more effective solutions to problems like traffic congestion, criminality and environmental degradation via more elaborated surveillance, monitoring and faster and rationalized decision-making based on “big data analyses”1. The question for whom, how and why smart urbanism provides all these improvements has evoked broad academic attention.2 In the Urban South, where access to infrastructure and technology can be considered highly unequal, the implications of Smart Urbanism as the international ideal for policy-making needs detailed and space-sensitive analyses. As Latin Americas´ “smartest city”, Rio de Janeiro has been celebrated for its efforts in access to the internet, big data collection and overall connectedness. With the aim of facilitating access to digitization and as one of the central drivers for this appraisal, Ships of Knowledge (Naves do Conhecimento), also known as Squares of Knowledge (Praça do Conhecimento), have been installed in eight marginalized neighborhoods of Rio de Janeiro. These multimedia libraries are offering courses in digital literacy, software and hardware to the general public, all free of charge. The Ship of Knowledge unit in neighborhood Nova Brasilia, located in the area known as “Complexo Alemão”, in Rio´s northern zone, is a case in point. This area is considered one of the most crime-driven conglomerate of neighborhoods, where police brutality against the youth, drug trafficking and low chances for social ascendance form part of the social reality of most inhabitants. The following interview with Professor Emeritus of Education and coordinator of this publicly financed multimedia library since its inauguration in January 2012, Nailton de Agostinho Maia, addresses the relationship between social opportunities and technological innovation in the particular context of marginalization. He argues for the central position digital inclusion occupies in individual and collective emancipation and social mobility.

Frank Müller (F.M.): O Rio de Janeiro mantém o quinto lugar na classificação das Cidades Inteligentes no mundo. Como você explicaria este sucesso?

Nailton de Agostinho Maia (N.A.): Isso verdadeiramente assusta! Eu trabalho em uma Nave que está inserida nesse contexto de prover um espaço de tecnologia de acessibilidade e acesso às redes. Como um cidadão e não como especialista, eu diria assim: Se é que o Rio é no quinto lugar, o mundo vai muito mal. O primeiro ponto é, quem é que tem acesso? Acesso para que? Tem uma população no RJ, eu diria 2/3 da população que não está incluída nos direitos à cidadania. Ela está muito distante das condições do bem-estar social - porque tem outras necessidades, que são mais básicas e não estão disponíveis. A “cidade inteligente” não cuida de seus jovens, por exemplo. Então, por que é que a cidade é inteligente? Inteligência está ligada à condição humana, só nós damos o nome da “Cidade Inteligente“. Se o humano tem essa inteligência, primeiro tem que favorecer à vida humana, do cidadão, com a possibilidade de compartilhar a vida boa e simples para todas e todos. E com isso de fato automaticamente se chegaria a uma cidade inteligente. E eu acho que essa ideia é mistificada, e isso traz perigos: o Rio de Janeiro acabou de criar um decreto da Prefeitura em que diz que jovens e crianças que pegarem um ônibus na zona norte serão barrados se não tiverem dinheiro no bolso.3 Eles não podem ir até o lugar onde eles quiserem ir, praticamente na praia, porque não estão incluídos na “cidade inteligente“, porque não podem participar da “cidade inteligente”.
O que vejo hoje na cidade é que a tecnologia é uma realidade e é necessária. Mas então, se na cidade todos tivessem a possibilidade de participar, de ter acesso, e interação (respostas), isso realmente poderia ser uma “Cidade Inteligente”. Mas, por exemplo, se aqui na comunidade tem uma senhora que precisa falar com um médico, a rede de tecnologia poderia ser um instrumento fantástico para promover o encontro e solucionar com os cuidados médicos necessários. No entanto ela não tem as condições de falar com ele porque não tem acesso, porque não existe um programa inteligente para as populações pobres, porque não há médico para orientação. Como essa cidade está no quinto lugar na lista, quando as pessoas estão morrendo por não serem atendidas pelos médicos?

F.M.: Como as Naves do Conhecimento podem contribuir para melhorar essa situação?

N. A.: Se tem essa Nave aqui que é fantástica – mas ela é surreal! A 50 metros deste ponto, você vai ver jovens armados. Qual é a grandeza desse lugar aqui num contexto assim? Que espetáculo é esse? Eu poderia dizer: isto é uma maravilha, olha toda essa tecnologia... Mas eu vou dizer, isso aqui é um lugar em que se tenta mascarar uma cidade que deve muito no campo social, de um país que tem dívidas sociais, que se está recuperando, está tentando corrigir 500 anos de dívida social. Que não é fácil.
Se os professores assumirem este modelo de tecnologia sem essa consciência crítica, sem uma fundamentação humanística frente a qualquer tecnologia, pensar na Cidade Inteligente como tecnologia, na tecnologia pela tecnologia, o problema começa. A fundação humanística tem que vir antes. A minha formação é essa, ver as coisas com reflexão crítica. A tecnologia tem que servir nessas questões humanísticas e não pode ser um fim em si mesmo.

F.M.: Como a Nave está se organizando para dar preferência às questões sociais frente à tecnologia?

N.A.: É um ponto importante. No Rio de Janeiro existem 8 Naves. Aqui, em Nova Brasília, tem uma ONG que faz a gestão desse equipamento, se chama Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP). Ela tem 30 anos trabalhando aqui no RJ, trabalha com equipe profissional de arte, cultura e tecnologia, com fundamentação humanística. Entre os seus fundadores estão Claudius Ceccon e Paulo Freire. Nessa linha se faz a gestão da Nave. A gente procura espaço para mostrar que é possível fazer um trabalho público de qualidade.

F.M.: Parece essencial a relação entre a Nave e a comunidade. Como vocês se acercam aos vizinhos e moradores da comunidade?

N.A.: Aqui em Nova Brasília o CECIP tem a metodologia de “Preciso Conhecer“, o CECIP não inventa nada, não constrói nada sozinho. Nós chegamos aqui em 2011, o projeto começou em janeiro de 2012. Chegamos antes do que aqui se começou a construir. É uma maneira nossa de trabalhar. Eu fui convidado, na época, fui dispensado da universidade em que atuava há 30 anos , tive uns conflitos com a nova geração de gestores, trataram a educação como mercadoria, acho que eu não estava preparado para isso, e aí o CECIP me convidou para este projeto, o que foi muito bom. E a maneira era conhecer e aprender aqui, então cheguei aqui muito antes de começar construir, passei tempos conhecendo aqui os grupos. O CECIP participou muito antes de inaugurar a Nave, começou a dialogar com as pessoas e a prefeitura sobre como ia a ser o processo aqui, que cursos daria, qual autonomia teríamos para fazer o trabalho.
Em 2012 se chegou a inaugurar com as lideranças da comunidade já conhecendo um pouco mais o CECIP. Teve muita conversa, muito diálogo, um entendimento que a educação é um lugar neutro. neutralidade não num sentido de que não há ideologia. Neutralidade num sentido que todas as ideologias devem estar presentes, mas tem uma que normatiza o espaço: aqui tem o CECIP com a sua metodologia. Mas isso não pode excluir o diferente, isso foi muito importante. Porque a gente está num território, no qual há forças oficiais, e forças não oficiais.

F.M.: Vocês estão em contato com a UPP4 e as associações de moradores, por exemplo?

N.A.: Temos tido sempre quando necessário, no início muito mais, algumas reuniões com a polícia aqui. As associações de moradores passaram a confiar nesse espaço, o espaço e as pessoas passaram a ter uma legitimidade. Temos um reconhecimento de todas as forças do território, elas nos apoiam muito. Tem os que consideram que poderia ser de outra maneira, mantemos o diálogo permanente com todos, como método e o posicionamento com as atividades que a gente faz aqui.  A gente acredita muito que se há uma transformação possível e necessária ela se dará muito mais por desenvolvimento de pensamento crítico por meio da arte, da educação, da cultura e tecnologia. Arte e cultura podem subverter! Todos os nossos cursos têm um pensamento, não são só técnicos. O humano não é só técnico, o humano é inteligência, é pensamento, e pensamento é relacionar coisas, é produzir conhecimento e crítica. Quem se relaciona faz crítica. Se a gente vai ensinar Adobe Indesign ou sistema Cisco, ou mesmo inglês técnico, a gente gostaria de pensar essas coisas em conjunto com o pensamento crítico. É importante saber-se no mundo. E isso é uma grande tarefa.

F.M.: Nessa ideia entram também ideias de como melhorar o lugar onde moram os frequentadores, quer dizer, a questão urbana? Vocês têm cursos para discutir os problemas do entorno da comunidade?

N.A.: Tudo o que acontece aqui dentro é pensado nessa linha de que tudo aqui tem que ter sentido, e o sentido aqui para gente é exatamente pensar a vida boa e simples, falando filosoficamente. É dizer, pensar as mudanças necessárias, pensar o cotidiano, pensar a família, a vida, o lugar. Diante disso, tudo o que se imagina aqui não é solto, em algum momento se vai juntar às pessoas para falar. Quando eles vão fazer um site, eles vão pesquisar quais são as necessidades para fazer um site para a comunidade. A gente recebe alunos de vários lugares, a maioria é daqui, mas vem de outros lugares também, porque a nossa meta também é a mistura.

Mas, o importante é a identificação com a comunidade: dentro do pessoal que trabalha aqui tem 50% de moradores do Complexo e 50% moradores de fora. Mas antes de começar o projeto, a gente teve uma meta que era que ao terminar o contrato, que todos os trabalhadores sejam moradores daqui, mas com um entendimento de que se houver necessidade que não se encontre no local, se contrate profissionais de fora da localidade. Tudo isso faz parte dessa preparação de discutir a relação com a comunidade. Não tem um mês que a gente chegue aqui para dar aula sem que tenha havido um tiroteio na madrugada ou durante o próprio dia. Então como atender às crianças aqui, sem conversar sobre isso? Sem conversar sobre que cidade é essa? Como nesse contexto social e geográfico você consegue não discutir a violência urbana, e também as oportunidades dos jovens? Por que é que nas escolas não se discute, por que para os jovens da periferia as oportunidades são sempre de trabalhar em mecânica, de trabalhar em portarias, de trabalhar como cabeleireiro, num salão de beleza ou numa sala policial, no exército militar? Nada contrário aos cursos, mas por que só esses? Por que é que não tem recursos para ser piloto de helicóptero, não tem curso de filosofia, de pensamento crítico? São necessários para fazer melhor as coisas técnicas. Eu acho que um cabeleireiro será melhor por quanto mais ele tiver um pensamento crítico. Mas as oportunidades dos jovens ficam muito nessa linha. E nós estamos aqui para apresentar os conhecimentos das novas tecnologias com o pensamento reflexivo, crítico. Antes de formar programadores é necessário discutir essas questões humanas, fundamentais.

F.M.: Se a tecnologia chega no segundo lugar, depois da realidade social, como a tecnologia pode servir para mudar essa realidade?

N.A.: A realidade de um tiroteio é muito mais forte que qualquer curso de IT ou discurso filosófico que se possa dar. Aqui tem coisas fantásticas. Ninguém escolhe o lugar de nascimento, mas ele decide as possibilidades que a criança tem. E isso é a coisa surreal, que o estado deve ajudar. No início houve muito espanto de todos, dado a diferença do que se tem neste espaço e a realidade do lugar. Como se trabalha isso? O equipamento foi construído com dinheiro público, então isso aqui é de todos nós. Essa conversa que se faz com todo mundo que chega aqui. Se é de todos nós, devemos cuidar, nós somos responsáveis, não foi dado. Ou seja, atuamos para esclarecer o sentido público da coisa pública. Temos no Brasil uma cultura de clientelismo, de fazer política dessa forma, você deixa uma coisa em troca de votos, principalmente quando chegam as eleições. É um modelo que a gente ainda não chegou a superar. Aqui no Rio, e no Brasil em geral, se tem uma classe média que não quer mudanças, e que faz de tudo para que essa população não se misture economicamente e socialmente. Eu sou a favor de começar com mudanças da consciência, do pensamento.

F.M.: As crianças têm essa consciência da polarizacao social, das injustiças que a sociedade urbana impõe sobre a vida delas?

N.A.: A gente faz essa discussão aqui, o resultado é limitado por um silêncio perigoso, a opressão está por dentro da pessoa: o pobre, o desfavorecido economicamente, ele é crescido, nascido para não falar, não ver, não escutar. Você tem o equipamento, bom. Mas é do governo. Se as pessoas que entram aqui experienciam que o espaço pode funcionar para todo mundo, isso cria um sentido público. E eu acho que é essa consciência que a gente tocou aqui nesse espaço.

F.M.: Seria essa uma cidade inteligente, então, onde a tecnologia incentiva o diálogo entre vizinhos e classes sociais?

N.A.: A tecnologia é fundamental para a vida em sociedade. Acredito que a tecnologia pode servir à ascensão social se ela for usada com intenções libertárias, de emancipação, prestar o serviço para as pessoas, ampliando o diálogo e criando uma consciência sobre as condições que reproduzem a injustiça, como a opressão policial, a violência, a exclusão de certos segmentos do povo do mercado liberal, e mesmo de um pensamento crítico sobre a sociedade.



1 Rob Kitchin (2014): The real-time city? Big data and smart urbanism, in: GeoJournal 79, 1-14.

2 Simon Marvin, Andrés Luque-Ayala and Colin McFarlane (2015): Smart Urbanism: Utopian Vision or False Dawn?, New York: Routledge.

3 Agostinho se refere a um debate sobre ações policiais que no ano passado incluíram detenções arbitrárias de até 200 jovens que, andando de ônibus, estavam no caminho da Zona Norte, onde moram, às praias da zona sul

4 UPP (Unidade de Polícia Pacificadora/ Pacification Police Units) refers to a policing program which, starting in late 2008, has been implemented in low-income communities (favelas) of Rio de Janeiro.