SPECIAL SECTION


“Você é mulher em um campo dominado por homens?”Entrevistas com Márcia Regina Barros da Silva e Léa Maria Leme Strini Velho


Entrevista realizada por Raquel Velho e Laura Kemmer

University College London e University of Hamburg


Rio de Janeiro e Campinas, Brasil, Septembro e Dezembro de 2015


Nesta edição especial de CROLAR sobre os estudos sociais da ciência e da tecnologia (ECTS) incluímos entrevistas com duas acadêmicas brasileiras da área. Por sua diversidade, ECTS abrangem várias áreas das humanidades e decidimos então realizar entrevistas com representantes de especialidades diversas, uma da história e outra da política científica. Nossas entrevistas visaram a explorar o mundo CTS no Brasil, em particular, e na América Latina de modo geral e as impressões dessas acadêmicas sobre o campo.


A Dra
Márcia Regina Barros da Silva foi entrevistada pela Laura Kemmer na última reunião do ESOCITE-BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias, 2015). A Dra Da Silva é docente no departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), é presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e membra do conselho da ESOCITE-BR.


A Profa
Léa Maria Leme Strini Velho foi entrevistada pela Raquel Velho. A Profa Velho é professora titular do Departamento de Política Ciêntífica e Tecnológica (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi pesquisadora senior e diretora de pós-graduação no Institute for New Technologies da Universidade das Nações Unidas e é membra do comitê editorial de periódicos nacionais e internacionais.


CROLAR: O que lhe interessou por esta especialização da ciência, tecnologia e sociedade?


Márcia Regina Barros da Silva (MS): A minha perspectiva como historiadora é que os estudos de ciência, tecnologia e sociedade tem uma larga trajetória no Brasil. Nos anos ‘70, entre os primeiros professores de uma linha nova de historia da ciência eram a Maria Melo, o Shozo Montoyama, por exemplo. Agora, o campo chamado “CTS” e algo mas recente. […] O término começa a circular mas quando os primeiros alunos Brasileiros voltaram de estudos no estrangeiro, viravam professores e institucionalizaram o campo CTS no Brasil. Agora, mesmo sendo um campo interdisciplinar, na profissionalização dos estudos CTS persistem diferenças entre as disciplinas. Na atual conferência da ESOCITE, por exemplo, historiadores representam uma minoria em comparação a outras matérias humanas. De qualquer forma, é importante destacar que a dimensão histórica da produção científica é considerada por todos esses estudos.


Eu acho que a minha trajetória é similar à de outras pessoas. A minha chegada no campo dos Estudos de Ciência e Tecnologia foi estimulada pela leitura dos clássicos. Depois da pós-graduação, eu fiz um curso com Simon Schwartzmann, um autor importante no Brasil, que publicou em 1979 uma monografia sobre a Educação Superior Brasileira. No seu curso, limos autores clássicos, como Latour, McKenzie, et cetera. Por que eu comecei achar esses textos interessantes? Muitos dos artigos que são traduzidos aqui não são preocupados somente com o que atualmente é conhecido como “CTS”, mas também estudam o uso de documentos históricos. O que eu acho atraente nesses estudos, é que mesmo sendo muito heterogêneo, eles compartem uma preocupação com uma pergunta básica: “O que é a ciência”? E aí você percebe que a ciência muda com o tempo. Ela precisa ser localizada historicamente em algum momento, para entender qual era a situação específica em que um conhecimento fui produzido.


Léa Maria Leme Strini Velho (LV): Eu sou engenharia agrônoma de formação e mestre em Produção Vegetal e sempre quis fazer uma carreira acadêmica. Em 1979 eu era professora em tempo integral e dedicação exclusiva do departamento de Engenharia Agronômica da Universidade de Brasília (UnB). Eu me sentia muito infeliz nessa posição, não porque não gostasse de trabalhar na universidade, mas porque a UnB naquele momento não era o lugar mais acolhedor […] pois, além de pouco estimulante do ponto de vista acadêmico, era profundamente autoritário e controlador do ponto de vista do pensamento e das atividades – a direção da UnB era atrelada aos militares. Assim, quando em julho deste mesmo ano eu recebi um telefonema do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) perguntando do meu interesse em concorrer para um cargo como analista de Ciência e Tecnologia (C&T) na área de ciências agrárias, não tive dúvidas em enviar meu curriculum vitae e fiquei torcendo pelo melhor. Semanas depois fui chamada para uma entrevista e logo fui contratada e introduzida à instituição e às atividades a serem desenvolvidas por um analista de C&T.


Portanto, minha entrada na área CTS deu-se pela prática, pelo dia a dia da implementação de atividades relacionadas à política científica. Quando se vive 8 horas por dia analisando projetos de pesquisa e currículos de pesquisadores, coletando e analisando dados sobre temas de pesquisa preferenciais e temas negligenciados, justificando a alocação de mais recursos para uma área de conhecimento, testemunhando o funcionamento da revisão por pares, escutando colegas que cuidam de outras áreas, visitando instituições de pesquisa e experimentos no campo e estimulando a cooperação científica nacional e internacional, é impossível não se relacionar com o campo CTS. Assim, foi meu trabalho no CNPq que despertou meu interesse na área. Eu fui, então, buscar um programa de Doutorado em que eu pudesse encontrar respostas para as questões com que eu me deparava no dia a dia e, assim, cheguei ao
Science Polcy Research Unit (SPRU) da Universidade de Sussex, no Reino Unido. A partir daí eu sabia que meu vínculo com o campo CTS seria para sempre, na alegria e na tristeza.


CROLAR: O atual numero de CROLAR se enfoca nas relações da ciência e tecnologia com a sociedade: Que relevância tem essa dimensão para você?


MS: Claro, no mundo acadêmico latino-americano debatemos continuadamente se a ciência funciona independente da sociedade ou se deve ser localizada em momentos históricos específicos. A segunda, a historia social “situada” virou uma preocupação central para as comunidades cientificas brasileiras e latino-americanas. E quem quer entender essa história tem que estudar os objetos também, com os documentos, as letras, as inovações técnicas. Isso acontece quando os cientistas começam, no século XX, a se interessar não somente pelas historias laudatórias das grandes rainhas, colonizadores etc., mas para os indivíduos que anteriormente pareciam não ter historia. Uma ciência preocupada com as relações de poder, com os vencidos, com historias que não parecem ligadas ao mundo da grande economia e política.


LV: Perceber o papel da sociedade, ou de diferentes atores sociais, na produção e uso do conhecimento é fascinante. Na minha formação como engenheira agrônoma aprendi as bases científicas em que se assenta a agricultura moderna e as tecnologias para uso na agricultura como se as primeiras fossem universais e as últimas fossem soluções de ordem geral. O contexto de geração e aplicação das mesmas era raramente considerado. Durante o meu doutorado fui exposta ao questionamento destas premissas universais e gerais, e então a “sociedade” entrou no meu referencial como ator concreto e ativo. Esta nova visão mudou minha vida intelectual, abrindo avenidas de estudo, reflexão e pesquisa e oportunidades para intervenção. Essa visão rechaça a aplicação direta dos resultados encontrados nos países avançados para a nossa realidade. Ela nos obriga a estudar e entender nossa sociedade, nossa história, identificar os grupos de interesse, fazer estudos de caso detalhados, dissecar os referenciais conceituais, analíticos e metodológicos que existem e refletir sobre a utilidade dos mesmos para nossos estudos. No nível pessoal e como acadêmica perceber o papel da sociedade na C&T foi transformador. Como docente tento que meus alunos também tenham oportunidade de passar por essa transformação. Tento fazer o mesmo quando estou envolvida em discussões de política, particularmente, de política científica.


CROLAR: A nossa motivação central para esse número era uma percepção de desigualdade entre América Latina e a produção científica em inglês na área de estudos CTS: Qual é a sua perspectiva sobre isso?

MS: Claro que existem diferenças. O objeto de ciência na Europa e nos Estados Unidos é diferente do objeto de ciência daqui. Embora você possa usar referentes similares, a língua é um separador. Todo mundo disse que lê inglês, mas quem realmente lê português? Existe uma assimetria acadêmica, não podemos negar isso. Claro que têm intercâmbios acadêmicos: nós vamos para lá, convidamos muitos acadêmicos estrangeiros [para cá]. Mas essa não é uma verdadeira integração, são poucos os casos de intercâmbio ainda. Sou eu quem precisa escrever em inglês para conseguir um intercâmbio. Eu também acredito que a nossa capacidade de identificar problemas nossos faz uma diferença no conteúdo de nossos textos em comparação a textos do mundo inglês-falante, por exemplo.


Agora, tem outras pessoas que acreditam que não, que já não existem problemas locais, que todos vivemos em um mundo globalizado. Eu penso que o nosso futuro vai para outra direção. Nem sempre podemos falar do que acontece nos Estados Unidos ou na Europa e também não podemos encontrar todo que acontece lá aqui no Brasil. Por exemplo, nós temos um acelerador de partículas, no instituto de física da Universidade de São Paulo. Ele se encontra em um prédio da cidade universitária, com acesso restrito obviamente. Mas se eu for procurar pesquisa em física de partículas, eu vou encontrar muito menos resultados do Brasil. E isso se dá por que? É óbvio que no Brasil temos menos equipamento, dinheiro. Você, como físico de partículas, não publica necessariamente em inglês. E como historiadora do Brasil, por que eu também teria que escrever em inglês? Resumindo, depende também da área, se você tem a necessidade de interatuar com o mundo inglês-falante.


LV: Como qualquer outro campo, a pesquisa em CTS necessita recursos financeiros, recursos humanos, instituições, parcerias. Na medida em que tais recursos são assimétricos na comparação entre a América Latina e países avançados que publicam principalmente em inglês, a produção científica resultante é também assimétrica. Eu não vejo qualquer problema nessa assimetria – ela é um fato da nossa vida e evidência das nossas diferenças. Eu que tenho trabalhado com indicadores científicos há tantos anos, luto por mudar essa comparação quantitativa que se faz da nossa produção científica com a produção de outros países precisamente porque as condições de produção são diferentes. Minha escolha é comparar nossa produção consigo própria no decorrer do tempo. Quando se procede assim fica evidente que o campo CTS tem crescido muito, na América Latina em geral e no Brasil em particular, em todas as dimensões. Consequentemente, tem crescido muito nosso conhecimento a dinâmica de produção e uso do conhecimento nos nossos países. Têm sido produzidos estudos primorosos de casos de sucesso (e de fracasso) em que os atores sociais são identificados, o contexto é descortinado, os condicionantes são apontados.


Se se pode falar em assimetria de conhecimento neste campo como problema, penso que ela se manifesta de duas formas. Primeiramente, porque produzimos principalmente nos nossos idiomas (português e espanhol), somos pouco lidos nos países avançados. Nossa produção CTS em inglês e em revistas
mainstream é proporcionalmente muito pequena. Então, a comunidade internacional conhece pouco o que fazemos. Em segundo lugar, embora tenhamos uma produção crescente e de boa qualidade de estudos de caso, ainda não produzimos referenciais teóricos ou conceituais próprios para análise de tais casos, com a distinta exceção do que se convencionou chamar PLACTS ou Pensamento Latino Americano em Ciência Tecnologia e Sociedade.


CROLAR: Você é mulher em um campo que a nível internacional é dominado por homens. Você concorda com essa impressão? Como é a situação em América Latina o no Brasil?


MS: Nessa conferencia da ESOCITE eu vejo muitas mulheres. Mas isso se da também pelas especificidades locais. A universidade brasileira, por exemplo, tem áreas que são majoritariamente femininas. Muitas vezes, essas áreas são consideradas menos importantes na hierarquia dos conhecimentos. Agora, dentro das áreas também é preciso diferenciar. No campo da Ciência e Tecnologia tem muitas mulheres. Porém, isso não significa que a história das mulheres nesse campo está muito estudado. As mulheres nas ciências são uma minoria ainda. O problema ali é que tem pouca documentação também sobre isso, documentos históricos, falas dessas mulheres etc. A minha impressão pessoal é que no Brasil, na América Latina esse tema ainda não foi discutido suficientemente.


LV: Não sei responder com segurança se o campo CTS em nível internacional é “dominado por homens” hoje. Depende do conceito que se adota: em termos quantitativos? Em termos de “poder”? Em termos de influência intelectual? Mas, estou disposta a arriscar uma resposta (correndo o risco de ser injusta): provavelmente é dominado por homens, tal como se dá em todas as áreas do conhecimento. Mesmo nas áreas em que o contingente de mulheres pesquisadoras é maior que o de homens, a “dominação” dos últimos em termos de poder é inequívoca. O que eu posso dizer com mais clareza é como eu sinto a influência de homens e mulheres que trabalham no campo CTS na minha formação e na minha pesquisa. Por exemplo, os textos principais que me formaram como pesquisadora nesta área foram, em sua maioria, escritos por homens. Na medida em que se pode chamar de “dominação” a influência que os pesquisadores têm na concepção de um determinado campo, a mim parece que o campo CTS ainda é dominado por homens no nível internacional. Mas quero esclarecer que em alguns temas específicos, com destaque para estudos de gênero em CTS, as mulheres dominam, o que era de se esperar, e elas têm aberto avenidas ricas e enfoques inovadores que se disseminam para outros temas.


Na América Latina e no Brasil também percebo o campo CTS dominado por homens, mas de uma forma um pouco diferente. Aqui penso que a contribuição intelectual das mulheres tem sido equivalente à dos homens em termos da influência na produção de conhecimento e formação de jovens pesquisadores, mas com uma preponderância dos homens nas estruturas de poder do campo. A mim parece existir até mesmo uma certa “truculência” dos homens para ocupar postos no campo. Mas, esse tipo de disputa parece não interessar às mulheres.